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Death Stranding — A apoteose funcional de Hideo Kojima

Arte é subjetiva e nela há uma infinidade de interpretações e significados emocionais, porém um elemento não muito presente nos games são reflexos de seus criadores com uma mensagem pura baseada em um momento real da vida de uma pessoa. Death Stranding é um dos únicos games AAA em que se pode enxergar o criador por trás da obra. A metalinguagem é clara: Death Stranding fala de conexões e como temos que nos unir para não desmoronarmos. Mais que uma mensagem ao mundo sobre nossa realidade, é um reflexo da vida de Hideo Kojima e como as conexões o fizeram estar onde está. 

Death Stranding é um game sobre reconectar um país inteiro e as pessoas após uma catástrofe e foi criado pelo Kojima conectando pessoas após uma “catástrofe” em sua vida — sua partida da Konami. Hideo perdeu tudo que construiu por anos, mas usando suas conexões apenas, acabou por conseguir uma parceria para seu novo projeto, apoio para abrir um novo estúdio e até mesmo a Decima Engine, da Guerrilla Games, para a realização de sua visão. Alguns eram completos estranhos e ainda assim o ajudaram. Com uma visão e direção completamente claras e pouco mais de 3 anos após ser anunciado, Death Stranding finalmente está entre nós.

Como toda obra que se arrisca, há incertezas. Death Stranding é diferente e único em conceito e gameplay. É difícil categorizá-lo em um gênero, muito menos recomendar para qualquer um. Ele é uma experiência que te ganha ao mesmo tempo pelo minimalismo e pelo espetáculo.

Os videogames desde o início usam entregas como uma das formas de gameplay. Entregue uma mensagem ou algum item. muitas vezes são missões mal vistas com senso de repetição e simplicidade, dificilmente eles adereçam como um elemento mundano, porém diferente desses games que mascaram essa mecânica de diversos modos, Kojima a coloca à frente do seu game e fez das entregas o elemento principal do gameplay. Grande parte da experiência é ir do ponto A a B e muitas vezes nada acontece nessas longas caminhadas, mas mesmo assim a ideia surpreendentemente funciona. 

Atravessar esse mundo é prazeroso devido à grande atenção a detalhes e por todos os elementos terem algum sentido: o contexto, a atmosfera, a música e a movimentação prazerosa… Tudo faz com que haja não só sentido nessas caminhadas e uma sensação de contemplação ímpar graças ao vasto e belo mundo como uma identidade visual marcante nos cenários. Há uma grande influência de paisagens irlandesas; há vida no vazio, e beleza na destruição. O mapa, por maior que seja, parece ter sido construído meticulosamente e nada parece estar lá apenas por estar e influencia diretamente no gameplay.

O seu objetivo é reconectar os Estados Unidos após uma catástrofe nomeada Death Stranding. Você o reconecta fazendo entregas a instalações espalhadas pelo mapa. O gameplay consiste em manejamento de carga e suprimentos. Quando você aceita um pedido de entrega, abre-se um menu para escolher como levar a carga e quais itens carregar. Estes variam de escadas para te ajudar na travessia terrenos até bombas e armas. Algumas entregas têm condições especiais, como restrições a dano e tempo. Grande foco é dado à sua movimentação, que reage ao peso carregado, tendo que sempre estar focado em como está andando, e pressionar botões para manter o equilíbrio. 

O maior desafio nessas entregas é o terreno e como superá-lo. Algo que pode ajudar na tarefa são veículos como motos e caminhões que podem ser fabricados ou encontrados ao ar livre após serem deixados por jogadores nos mais diversos lugares espalhados pelo mapa. O aspecto mais único do game é seu elemento online, aliás. Você compartilha o mundo com vários outros jogadores, divididos por servidores e assim pode compartilhar itens e estruturas no mapa que te ajudem a superar obstáculos. Há estruturas que você pode construir (algumas pequenas e outras massivas) com consumo de materiais e também em conjunto com outros jogadores, beneficiando a todos. Isso é chamado de Social Strand System. Curtidas são dadas como forma de agradecimento por jogadores que usaram suas construções. Muitas vezes você irá se deparar com cenários vazios, mas após conectar a região às redes quirais, as estruturas de outros players aparecem e mesmo sem o game explicar exatamente como a parte técnica desse sistema funciona, é possível perceber que nem todas as estruturas aparecem para todos, isso balanceia a experiência não te tirando completamente as possibilidades. Esse sistema é um elemento que muda completamente não apenas o mapa como sua experiência. Traz uma grande sensação de gameplay emergente e de estar jogando do seu jeito.

O foco não é o combate e o game inclusive te recomenda a evitar confrontos com os inimigos. No caso dos BTs (ou, em português, EPs), que são seres ligados ao mundo dos mortos, stealth é sempre a melhor alternativa. Seu BB é conectado ao mundo dos mortos, assim podendo sentir a presença deles, facilitando que você atravesse certos locais sem ser pego pelos BTs. Prender a respiração também é ideal e caso você seja pego pelas criaturas, seu sangue e urina são eficazes contra elas devido às condições especiais do Sam que são esclarecidas na história. Já os MULAs, que são caçadores de carga ou terroristas (alguns só querem sua carga, já outros querem te matar para criar obliterações, que são explosões ocorridas após a morte de alguém), podem ser combatidos por muitas ferramentas como armas não letais com munições de borracha, choque, laços que prendem os inimigos e  também é possível usar bagagens como armas (que é muito eficaz, porém as danifica).

A corda, por mais surpreendente que seja, é sua ferramenta mais versátil, pois serve para derrubar inimigos sem ser notado e servem como como uma opção de contra-ataque ao pressioná-la no tempo certo, dando um “parry”. Há bosses obrigatórios com visuais estonteantes que se baseiam mais em espetáculo que mecânicas (apesar de ter exceções). Estes trazem grandes momentos e ajudam muito na experiência.

A morte funciona de um jeito diferente. Com exceções envolvendo a campanha, não há game over, pois Sam é um repatriado, um ser que não cruza o limiar da vida e morte. Ao morrer no game o cenário enche de água e você assume controle de sua alma e tem que se reconectar a seu corpo, porém morrer para BTs cria crateras no mapa, que são permanentes.

A parte técnica é deslumbrante, texturas, efeitos de luz e partículas tudo do mais alto padrão e conta com os modelos de personagens mais realistas criados até o momento, desde a textura da pele, até o brilho dos olhos. Cada fio de cabelo retrata fielmente os atores, esses que são um dos grandes destaques do games. As atuações são um espetáculo à parte. Quanto à performance, é de se espantar que o jogo rode tão bem, em mais de 63 horas de gameplay não foi visto nenhum bug ou queda de frame no mundo aberto (o que pode ocorrer às vezes é uma mini-engasgada ao sair de terminais, mas também é algo bem raro).

Obviamente o game não é perfeito. Há vários probleminhas durante as dezenas de horas, alguns podem ser subjetivos, mas é inegável que poderiam ser melhores. Em alguns momentos, o ritmo desacelera sem motivo e estica sua já grande campanha. Os menus podem ser confusos de início; as entregas secundárias quase não se diferenciam umas das outras, e apesar dos controles dos veículos serem bons a maior parte do tempo, em terrenos rochosos fica quase impossível de controlá-los e atravessar obstáculos. Todos esses problemas são mínimos, porém, não arranhando a experiência.

Kojima sempre foi conhecido por seus enredos complexos e bem construídos e Death Stranding não é diferente. De todos os seus games, Death Stranding é o que mais mescla história e gameplay. Tudo que você faz no game tem contexto na história e ajuda não só a deixar suas ações mais importante como também reforça a narrativa. Existe uma boa dosagem entre história e gameplay, e a narrativa é reforçada por cada objetivo que você completa, seja secundária ou principal, sempre fazendo conexões. Nas primeiras horas a história abre espaço para o gameplay brilhar e dá uma ideia que dessa vez não é o foco e que não vai muito longe, mas é aí que o Kojima nos engana. A partir de um certo momento, a história se desenvolve e vai em um crescendo até seu final catártico, com um desfecho poderoso que deixa uma grande marca. Tudo se encaixa, nada fica sem explicação, todos os acontecimentos têm um motivo mesmo que nas entrelinhas. Tudo na história funciona desde o mundo até cada personagem, todos têm seus momentos e conseguem manter esses laços até o fim.

Pros:

  • História complexa, bem escrita e emocionalmente forte;
  • Gameplay prazeroso e bem estruturado;
  • Trilha sonora impecável que soma a experiência;
  • Sistema online revolucionário;
  • Parte técnica impecável, e uma estonteante qualidade visual;
  • Ótimos bosses, que impressionam pelo espetáculo.

Cons:

  • Menus confusos;
  • Repetições para esticar a campanha.

Nota: 10/10

Plataformas:

  • PS4 (plataforma analisada);
  • PC.

No fim, Death Stranding é um atestado de criatividade e maestria. Tem uma visão clara sobre seus conceitos e os executa com primor. Tanto a história quanto o gameplay, com seu elemento online revolucionário que reforça os temas da narrativa e faz a experiência como um todo ser bem mais variada e inesperada, fazem de Death Stranding um dos games mais únicos já criados. É de se aplaudir a coragem do Kojima por fazer um game dessa escala tão experimental e diferente em pleno 2019. Esse é o tipo de coragem que faz essa mídia avançar e não estagnar como uma baleia encalhada.

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