“Licenciado, não vendido” — A erosão do ‘ter’ nos tempos modernos
O uso dos termos “proprietário”, “propriedade”, “compra”, “venda”, “vendido”, “vender”, “alugar” ou “comprar” neste Contrato ou em relação ao Conteúdo da PSN não significa nem implica qualquer transferência da propriedade de qualquer conteúdo, dados ou software ou quaisquer direitos de propriedade intelectual da SIE, de suas afiliadas ou de seus licenciadores para qualquer usuário ou terceiro.
O uso do termo “comprar” não significa ou insinua uma transferência de propriedade. Parece uma contradição, mas na verdade é parte dos Termos de Serviço da PSN. Um termo o qual todos os usuários estão vinculados a partir do momento que começam a usar qualquer dos serviços da PSN, desde a criação da sua conta. É claro, esses termos não são unicamente horríveis no mercado. Até mesmo a adorada Steam pela sua aparente amabilidade aos consumidores também tem termos parecidos em suas cláusulas de contrato com o usuário (só são felizmente mais transparentes ao se referir as compras como “assinaturas perpétuas”).
Não, o motivo que eu abri com os termos da PSN é porque ela foi uma das empresas recentes a exercer os direitos cedidos por esse acordo na forma mais draconiana possível. No começo de Julho foi postado um aviso no blog da PSN Alemã e Austríaca de que todos os filmes que seus usuários compraram seriam removidos das respectivas contas e não mais poderão ser acessados após 31 de Agosto do mesmo ano. Não é um caso de que não serão mais vendidos e quem comprou ainda poderia acessar, a “compra” (lembre-se, não implica transferência de propriedade) será removida das contas dos usuários. Isso veio um ano após a PSN encerrar as vendas desses produtos pela loja dela, algo que na época veio com a garantia de que os usuários que compraram ainda poderiam acessar esse conteúdo. Eu uso “garantia” de forma informal aqui, é claro que legalmente eles estão protegidos pois a frase exata é “quando essa mudança ocorrer (a remoção dos produtos da loja), usuários ainda poderão acessar conteúdo de filmes e TV comprado pela PS Store (…)”. E no momento que a mudança ocorreu isso era verdade, foi apenas um ano depois que isso mudou… sem muitos avisos prévios diga-se de passagem.
Por enquanto essa mudança só foi anunciada nesses dois países, mas manda uma mensagem bem clara para todos os outros que ainda tem acesso aos filmes comprados nos outros países: eles não são seus. Se a ramificação do seu país fizer um acordo errado com os licenciantes, você está alugando por um tempo indeterminado, mas perfeitamente finito.
E aí veio a Ubisoft
Se isso fosse um caso à parte, talvez não merecesse esse alarde todo certo? Ainda é algo horrível para o lado do consumidor e não deixa de ser uma prova concreta de que os Termos de Serviço atuais são extremamente leoninos, mas apenas uma ocorrência não é o suficiente para começar a argumentar de que o sistema de “boa vontade” que dependemos é frágil. Felizmente ou infelizmente, a Ubisoft resolveu contribuir para a discussão nem mesmo uma semana depois. No dia 11 de Julho foi anunciado que a editora estaria desligando vários serviços online de certos jogos. Boa parte dos jogos foram lançados mais ou menos uma década atrás, mas entre eles tem um título recente em Space Junkies (2019), o que é um pouco mais preocupante. Não dá para se culpar uma companhia por desligar servidores de jogos antigos já que é um serviço caro de se manter, mas se o jogo não for um sucesso imediato também é justo com os consumidores que compraram ter a sua funcionalidade cortada e seu dinheiro efetivamente desperdiçado? Indo além disso, muito dos jogos antigos vão perder mais do que funcionalidades online. Em particular vários jogos da série Assassin’s Creed irão perder acesso aos DLCs, muitos dos quais possuem conteúdo single-player e apenas algumas adições ao multiplayer*.
Deixando a situação ainda mais complicada, inicialmente foi dito que o acesso a TODO o jogo seria revogado, não só a opção de compra nem mesmo as funcionalidades online. Isso foi retraído após a atenção que a situação recebeu online, mas após retirar conteúdo dos DLCs do mesmo jeito fica difícil dar o benefício da dúvida de que a intenção nunca era remover o acesso por completo.
E novamente, os termos de serviço de todas as plataformas permitem que tal passo seja tomado sem qualquer recurso para os consumidores. Até mesmo a Steam/Valve, com toda a fama de pró-consumidor que eles possuem, também tem suas cláusulas leoninas.
E é claro, os termos da Ubisoft são ainda piores, com eles se isentando de quaisquer problemas que os softwares deles possam vir a causar nas máquinas de seus consumidores e jogando todo e qualquer custo legal ou de manutenção na mão do consumidor (Cláusulas 9 a 11).
Outros casos similares vem acontecendo de quando em quando. Em 2018~19 quando a Telltale passou por um processo de falência seus jogos foram sumindo de lojas digitais, tendo alguns casos peculiares como o de Minecraft Story Mode, onde o jogo voltou a ficar a venda por 100 dólares no Xbox 360 para que donos prévios pudessem baixar os jogos antes de sumirem da loja de vez.
Também no final de 2019, Dead by Daylight conseguiu uma licença de Stranger Things com a Netflix para adicionar Demogorgon e alguns personagens do show em seu jogo. No segundo semestre de 2021 a Netflix mudou de estratégia e começou a revogar licenças e o jogo não mais poderia vender esse pacote de DLC. Por sorte Behaviour Interactive foi competente o suficiente para conseguir um acordo que iria permitir com que jogadores que compraram o DLC ainda mantivessem os personagens e quaisquer extras que vinham no pacote, além de ter um período de aviso e promoção para que jogadores pudessem pegar o DLC, mas hoje o jogo estaria “incompleto” se alguém começasse a jogar hoje e quisesse pegar o pacote completo. Até mesmo a tela temática de Stranger Things foi removida, provavelmente por ser uma adição gratuita para todos os jogadores.
Essa situação facilita até mesmo alguns casos sérios de censura como o notório caso de Devotion: um jogo Tailandês que foi removido de todas as lojas após uma controvérsia com um meme político com o chefe de estado da China, Xi Jinping, e a comparação com o ursinho Pooh. O jogo foi removido de todas as lojas — afinal de contas nenhuma empresa vai querer perder acesso ao mercado gigantesco da China — e por um bom tempo simplesmente não havia forma de jogá-lo. A GOG até fez menção de colocá-lo na sua loja por um tempo, mas rapidamente cedeu a pressão também (e levou ao que eu pessoalmente considero o melhor tweet da conta paródia Ex-CEO Kaz Hirai).
A distribuição digital é extremamente conveniente e as vezes a única forma de um desenvolvedor indie conseguir colocar o seu jogo para o mundo afora, porém ficam sujeitos a esse tipo de situação, tendo em vista que todas as plataformas de distribuição operam sob um acordo parecido. A GOG tem o melhor acordo para o consumidor, (quase) prometendo um aviso prévio de 60 dias para todos os seus clientes baixaram todos os seus jogos no caso término de serviços; e como seus jogos são livres de DRM — Digital Rights Management — você poderá arquivá-los seja nos seus HDs ou em CDs, Blu-rays (ou até disquetes se realmente quiser aquela estética old-school) para mantê-los independente de servidores e serviços de terceiros. É claro, nenhum serviço online que não seja peer to peer irá funcionar, mas os componentes single-player e offline estarão ali com você.
“É por isso que eu só compro mídia física”
Um argumento muito utilizado contra essa tendência é o favorecimento de mídia física. Realmente, existem os benefícios em cima da mídia digital, porém os acordos de licenciamentos não são dependentes de qual o estado corpóreo do que você acabou de comprar. Voltando a um dos primeiros exemplos discutidos, mesmo quem tem a mídia física de qualquer um dos jogos dessa lista não mais poderá acessar os componentes online ou DLCs single-player após a data final dada pela Ubisoft*.
*Nota: Durante a redação desse artigo a Ubisoft mudou de posição mais uma vez e permitiu que jogadores mantenham acesso ao conteúdo single-player desses DLCs. Para a versão de PC é necessário que o DLC seja ativado antes da data final de 1 de Outubro de 2022 o que ainda é um problema, mas pelo menos é melhor do que o corte drástico anunciado inicialmente. O time por trás de Anno 2070 também se propôs a atualizar o jogo para manter funcionalidade total, o que é admirável pela parte deles. Se pelo menos mais jogos seguissem esse exemplo eu não teria motivos para escrever isso como uma preocupação real nos dias de hoje.
O famoso “licenciado, não vendido” não se limita ao digital. O disco físico é apenas um meio de instalação, mas o software contido nele ainda é “licenciado, não vendido” porque isso foi pouco a pouco introduzido e aceito no mercado. Em alguns casos isso faz sentido, particularmente para softwares de trabalho como o pacote Office, Adobe, SolidWorks, Matlab ou similares. Porém no caso de jogos que podem ser categorizados como produtos de entretenimento ou arte é complicado justificar um acordo que pode simplesmente fazer com que eles sumam da face da Terra da noite para o dia.
Então não, a mídia física não é a solução para esse problema. Existem as suas vantagens e pode até dar aquele conforto de “ter” o jogo na sua estante, mas a sua capacidade de jogá-lo está nas mãos da produtora tanto quanto dos jogadores que tem o mesmo jogo apenas na biblioteca digital por causa da forma que DRM opera atualmente. Na verdade, existem casos até que a mídia física pode atrapalhar o conceito de preservação quando é feita de forma predatória, mas isso é uma bifurcação completamente diferente e igualmente demorada. Para quem tem interesse, deixo um exemplo do que eu estou falando.
Então… O que fazer a partir daqui?
Olhando de uma forma geral, jogos são astronomicamente caros de se fazer. Adotar um modelo que restringe o mercado de usados e facilita a venda de módulos extras até faz sentido se olharmos por esse lado, e é por isso que todas as empresas sempre procuraram fazer o máximo para evitar atrito no mantimento desses acordos. Manter os botões com o nome de “comprar” e dar esse falso senso de segurança é essencial para que o ecossistema se mantenha de pé, mas quando a fachada começa a ruir, a gente tem que se questionar, se os produtores estão dispostos a puxar o gatilho independente de quanto for prejudicar o consumidor, isso é algo que a gente simplesmente tem que aceitar?
Na França, em 2019, uma corte local julgou que a cláusula da Steam que proibia a revenda de jogos digitais era ilegal e a Valve teria que permitir a revenda de jogos ou ser multada até cumprir essa função. Até a última notícia foi dito que a Valve iria recorrer essa decisão, e até um veredito final nesse caso nada ira mudar. De qualquer forma, não é esse tipo de coisa que irá melhorar essa situação. Já existem casos de jogadores que abusam a leniente política de reembolso da Steam. Se por algum acaso jogos digitais fossem obrigados a serem passíveis de revenda ao redor do mundo isso mexeria em um vespeiro com resultados inesperados e, muito provavelmente, catastróficos. É muito provável que desenvolvedores simplesmente começassem a adotar ainda mais modelos free to play com microtransações e DLCs ou os infames “jogos como serviço” (assunto para outro dia) já que o modelo tradicional se torna insustentável com uma simples legislação.
Então… O que fazer? É uma pergunta ainda sem resposta, mas um bom começo é começar a se reconhecer que esses problemas existem no primeiro lugar. Não é a mídia física que irá resolvê-los, e é bom reconhecer o verdadeiro impacto que DRM tem nessa conversa. Recentemente foi anunciado que a Denuvo entrou em um acordo com a Nintendo para tentar bloquear a emulação de jogos de Switch. Pelo histórico da Denuvo no PC, não só é improvável que esse objetivo seja cumprido, mas os jogos irão sofrer um visível impacto de performance e serão ainda mais suscetíveis a falhas de serviço daqui alguns anos (alguém ainda lembra do desastre que foi a GFWL?). O resultado será jogos que só serão possíveis de ser jogados através da emulação, ironicamente.
Como dito anteriormente, a fachada começou a ruir, e algumas empresas demonstraram que estão dispostas a puxar o gatilho à custas do consumidor se for necessário. É compreensível que um modelo que tenha controle do mercado de usados seja necessário para manter uma indústria cujo custo de produção seja tão caro, mas isso não significa que o consumidor seja obrigado a receber um produto etéreo que possa ser revogado a qualquer momento e faça a preservação da história daquela indústria ainda mais difícil do que já é.
Isso é um desserviço para todos. E falando em serviço… Não, fica para outra hora.
Um comentário
Samuel Lucas
Excelente texto, ótima abordagem. O licenciado já diz tudo, temos uma falsa impressão que estamos comprando, mas na verdade o que estamos comprando é o direito de uso que pode ser revogado a qualquer momento. Talvez se mais lojas fossem como o GOG teríamos uma segurança um pouco maior por poder arquivar os jogos em algum local seguro, mas o próprio GOG enfrenta problemas por causa da política free drm, muitos jogos nem estão disponíveis na loja deles, enfim é uma situação bem complexa.