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Fallout – A melhor adaptação de um jogo

Antes de mais nada, vou deixar claro que vou quebrar tradição. Reviews e análises geralmente devem ser feitas de forma impessoal, são textos informativos para a audiência decidir se tal produto ou obra vale o tempo e/ou dinheiro investido. Para jogos, eu tenho um vasto catálogo de experiências para saber o que pessoas procuram em um videogame. Mesmo que eu seja positivo sobre um jogo, espero ser informativo o suficiente para que pessoas saibam se elas podem não gostar.

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Para seriados, eu não tenho uma boa referência para julgar o que é bom ou não… Mas eu tenho o suficiente pra dizer se uma adaptação é boa ou não. E Fallout foi a primeira produção do tipo que me surpreendeu. A primeira que eu posso dizer que é boa e não ter que complementar com “é ok, pra uma adaptação, sabe”.

Vejam, adaptações de jogos geralmente caem em duas categorias. Ou são uma festa de referências e easter eggs para agradar fãs colocadas em cima de uma história vazia, ou são feitas por pessoas que tem um descaso ou desinteresse imensurável com a obra que estão adaptando e querem emplacar uma “idéia inovadora” que só funciona na cabeça deles (Como mencionar pornô de Zootopia em Resident Evil…).

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Existem algumas raras exceções a essas regras, mas mesmo essas exceções têm seus problemas. Castlevania começou promissor, mas quando deveria ter acabado foi quando começaram a esticar cada vez mais, misturando personagens de todos os jogos e transformando toda a premissa da série de uma dark fantasy para um drama mexicano medieval.

Alguns dizem que The Last of Us foi o primeiro a “quebrar a maldição”, mas ele cai muito próximo do primeiro caso de ser muito derivativo. Para quem eu perguntei que não conhece nada sobre videogames descreveu o seriado como um “clone das últimas temporadas de The Walking Dead” e, tendo em vista como o discurso ao redor da série foi quase não existente, fica difícil não concordar. Não é uma adaptação ruim, mas é completamente supérflua.

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Comparação entre os dois shows por Collider

Quando eu ouvi sobre um seriado de Fallout não esperava nada menos do que uma atrocidade. Especialmente sabendo que no melhor dos casos seria mais puxado para o Fallout da Bethesda do que os clássicos da Interplay. Minhas expectativas não eram nada menos do que algum clone derivativo de Westworld onde várias referências fora de lugar seriam colocadas. Especialmente tendo em vista que é o mesmo diretor para os dois shows.

Não foi até o primeiro trailer oficial ser revelado que eu comecei a me questionar se dessa vez finalmente seria diferente. No momento que a velhinha começou a rir da cara da protagonista e falou “Pensei que todos vocês merdinhas estam mortos!” eu imaginei o quão natural essa cena seria nos jogos da Interplay. E a frase “Todos querem salvar o mundo. Eles só discordam dos meios.” é uma linha mais bem escrita que tudo que a Bethesda escreveu desde Skyrim (excluindo Paarthunax).

E agora, tendo terminado de assistir a primeira temporada, posso dizer que não só é de longe a melhor adaptação de um videogame para cinema/TV que eu já vi, se tornou uma das minhas séries favoritas de todas.

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Do jeito que eu vejo, o sucesso do seriado se dá em duas frentes. A primeira é que seus eventos acontecem fora da linha do tempo de qualquer jogo, e até mesmo a localização é mantida de forma ambígua o suficiente para poder ser próximo ou longe o suficiente para qualquer coisa que a história precise. E a segunda é uma visível preocupação com entender o que Fallout significa e como traduzir esse sentimento para outra mídia.

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Sobre o primeiro ponto, o seriado gira ao redor de três protagonistas. A Vault Dweller Lucy MacLean, uma personagem cujo alinhamento moral é o clássico lawful good, representado boa parte dos jogadores que procuram fazer uma jogatina perfeita. O recruta da Brotherhood of Steel, Maximus, representado o tipo de playthrough que é altamente alinhado a uma facção. E o Cooper Howard, um Ghoul fora da lei, como o tipo de jogador que faz a própria “justiça” e foca em combate sempre que possível.

Para uma série que originalmente tem a premissa de fazer com que o jogador tenha um impacto na história, é o meio-termo que os escritores do show acharam para fazer com Fallout seja primariamente um seriado de TV, mas ainda mantenha uma certa representatividade entre os estilos de jogo.

E sobre o segundo ponto, é difícil sumarizar como que o seriado finalmente traduz um jogo para outra mídia, mas pode-se dizer que desde os estágios iniciais foi deixado claro o que Fallout tem que ser. Vulgar. Violento. E ligeiramente misantropo. E é claro, não só a atmosfera é distintamente Fallout, muito cuidado foi tomado para fazer o universo ser coerente com o que é esperado.

Como adaptação

Se tem uma coisa que é inegável, e o nível de cuidado que foi tomado nessa série quando comparado com qualquer outra adaptação do tipo. Enquanto o seriado do The Witcher não pode nem se preocupar com adaptar a história dos livros ou os visuais dos jogos de forma correta, Todd Howard comentou sobre a diligência da equipe em manter a fidelidade visual além mesmo do que ele pediu.

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O produtor de design do show, Howard Cummings, comenta como foi diferente trabalhar com a Bethesda quando comparado com outras adaptações que ele trabalhou em que o dono da IP insistia em aprovar cada milímetro a ser adicionado no show. Quando chegou no momento de passar a icônica Power Armor dos jogos de um ambiente virtual para o real, nunca foi exigido que o visual precisava ser fiel.

“Nos mostre como você acha que deve ser.”

Era a resposta que geralmente recebiam. Porém, Cummings conta que após uma pesquisa cursória sobre os jogos, ele gostou tanto da atmosfera que fez o possível para se manter o mais fiel possível. Eventualmente até conseguiram o modelo digital da Power Armor e fizeram impressões 3D para planejar como fazer a vestimenta da forma mais funcional possível.

Até mesmo nos trajes da Vault foi tomado um cuidado imenso para fazer com que as roupas realmente se parecessem como coisas as pessoas iriam vestir. Materiais convencionais ficam muito ruim em câmeras, ou são muito desconfortáveis para atores vestirem. A designer de roupas, Amy Westcott, conta que não queria nenhum visual que ficasse parecendo “spandex brilhante de fantasia de herói”. A solução? Um tecido extremamente específico produzido por uma têxtil italiana chamado Mectex.

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No que se trata de fidelidade, tudo foi tomado um cuidado imenso. O deserto realmente parece ter saído de um dos jogos. Stimpacks existem, e são exatamente como vistos nos jogos. RadAway, Jets, Brahmins, NukaCola, RobCo, Super-Duper Mart, NCR, um chip purificador de água, a icônica tela de loading dos jogos, e até mesmo o minigame de hacking estão presentes no seriado.

Comentar tantos easter eggs parece contrário com a minha crítica no início de que adaptações simplesmente usam isso de muleta, mas a mudança crucial é que nada disso recebe ênfase pela história ou pela câmera. Quando um personagem puxa uma Nuka Cola não tem aquele zoom dramático com o personagem quase piscando para a tela para passar a impressão de “Sacou? Sacou???”.

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Tudo isso são itens comuns, partes do universo. Quem nunca jogou nada de Fallout não vai reconhecer que isso são objetos dos jogos, mas todos são usados em momentos certos da história e tem sua inclusão justificada como mais do que fanservice barato.

Quando Vault Dwellers ligam uma lanterna embutida no PipBoy não é apenas uma referência a uma funcionalidade dos jogos, é uma peça pequena na construção daquele mundo que informa até mesmo que não conhecia nada antes desse show. É algo simples que com certeza seria ignorado em uma adaptação a lá Paul W. S. Anderson.

O capricho visual que os produtores do show tiveram faz com que toda a atmosfera seja familiar para quem já conhece, e perfeitamente autoexplicativa para quem não. Fallout não se preocupa em te lembrar de que é uma adaptação de um jogo. Ele simplesmente recria exatamente o mesmo sentimento que você tem jogando um, e deixa ele falar por si só.

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E isso provavelmente é o maior diferencial da série. É a primeira vez que o material original parece ser respeitado e não menosprezado. Com exceção da resenha do show, em nenhum momento o show precisa ficar lembrando que é uma adaptação. Ele é simplesmente “Fallout”. E como alguém familiar com a IP muito antes disso, ele é mais digno desse nome do que o 4 ou o 76.

Por mérito próprio

No começo eu disse que não tenho tanta experiência com seriados de TV ou a indústria cinematográfica como um todo. E realmente, não acho que minha gama de conhecimento seja ampla o suficiente para ser informativo o suficiente no que faz um show ser bom ou não.

Mas mesmo nessa limitação, Fallout se sobressai na sua apresentação visual. Um dos motivos que eu não ligo muito para filmes hoje em dia é pelo uso pesado de efeitos de computador. É claro, na maior parte os efeitos são bem-feitos e extremamente competentes em convencer a audiência do que está acontecendo.

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Esse quadro nunca vai deixar de ser divertido para mim.

Só que existe uma homogenização de visuais que é perceptível se você estiver atento a ela. Como alguém cuja mídia favorita é videogames, eu estou acostumado com visuais artificiais, mesmo quando se faz uso de fotorrealismo. E o seriado claramente se sobressai na sua apresentação visual, com ambientes que provavelmente jamais conseguirão ser recriados em um jogo.

Como eu disse na seção anterior, o cuidado com manter a identidade visual da IP foi fenomenal. Ao invés de usar o fato de ser uma adaptação como uma justificativa para mudanças desnecessárias, os criadores do show se esforçaram para manter a identidade visual já estabelecida pelos jogos, mas fizeram uso de vantagens únicas de seu meio.

Isso não significa que CGI não foi utilizado, nem que os momentos em que eles estão presentes são extraordinários. Existe uma cena em particular que se passa em um flashback e necessita de uma versão mais nova de um dos atores. A “rejuvenização” foi feita de forma completamente digital e ela é terrível.

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O surpreendente é como, mesmo não sendo proposital, isso vai de encontro com toda a estética tragicômica que Fallout representa. A visível contrastação entre os momentos excelentes e os momentos ruins contribuem para um tom surreal que complementa perfeitamente a insanidade do universo.

Logo em um dos primeiros episódios, temos um personagem correndo de uma metralhadora automática, uma cena clássica de ação. Sua execução não é boa nos aspectos técnicos, mas ver a chuva de balas miraculosamente não atingir o alvo nenhuma vez cria a mesma suspensão de descrença que temos ao ver Nathan Drake sair de um tiroteio completamente ileso em Uncharted.

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No show temos um vendedor ambulante que vê um outro personagem com um enorme ferimento no pé e declara que possui um elixir capaz de “crescer pés de volta”. Esse vendedor volta de novo em um episódio posterior em uma outra situação parecida, mas que dessa vez a vítima aceita a “cura”. No momento que ela funciona de fato, nem sequer é necessário questionar a validade da situação. Isso é Fallout. Um vale-tudo de bizarrices.

Tudo isso amarrado em um bom enredo que, apesar de não ser muito original, é muito bem contado. Assim como Fallout 4, o seriado tem uma história completamente linear. Diferente de Fallout 4, o seriado faz uso da linearidade para entreter a audiência com uma história coerente.

Eu não posso afirmar o quão bom Fallout funciona para quem não conhece a IP, ou nem sequer joga videogames. Mas se até mesmo com o meu conhecimento limitado de filmes e seriados eu conheço histórias muito piores, acho que é seguro afirmar que o show faz o suficiente para ser pelo menos aceitável.

Mas e as inconsistências na lore?

Desde que o seriado saiu, o maior ponto de discussão foi nas suas inconsistências com certos eventos dos jogos. O que talvez seja uma opinião um tanto quanto controversa, eu tenho que concordar com o criador de Fallout New Vegas. Eu não me importo.

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Fallout é sobre esse cenário pós-apocaliptico atompunk. Em teoria a guerra que destruiu o mundo aconteceu só em 2077, mas mesmo nesse futuro distante para nós hoje, Fallout usa toda a estética dos anos 80. Diferente de um modelo exageradamente futurístico como Os Jetsons, em Fallout as pessoas usavam TVs de tubo e computadores gigantescos rodando em uma variação de MS-DOS.

Existe um motivo prático para isso, é claro. Quando Tim Cain criou o jogo, a intenção nunca foi ter um mundo coeso e elaborado. Ele simplesmente escolheu uma estética, e criou um RPG que desse o máximo de liberdade possível para o jogador. Se uma história não foi criada com ambições de se tornar um universo expandido, a chance de erros ao tentar elaborar de forma póstuma é imensa.

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Ainda mais no caso de Fallout que foi criado com inspirações de Mad Max em uma realidade onde a Guerra Fria ainda estava nas memórias de todo mundo, só para passar de mãos para outros criadores depois de uma década, entrando em uma outra realidade social e cultural.

O show demostra um nível de conhecimento dos jogos clássicos, mas, ao mesmo tempo, pega muito do que foi estabelecido pela Bethesda a partir de 2008. A lore de Fallout é um telefone sem fio que pode ser analisada em contraste com a época que foram criados. Eu nunca esperei um world building com o mesmo capricho de Tolkien, por exemplo.

É inegável que o seriado comete algumas falhas graves de continuação, e discutivelmente até toma decisões “seguras” demais para não ter que confirmar nenhum canon dos jogos. O que eu não acredito é que isso influencie na qualidade da série.

Como dito anteriormente, Fallout é sobre ser violento, vulgar, e quase misantropo. É uma insanidade que pode ser tanto engraçada quando trágica. Falhas de continuação são decepcionantes, mas estão longe do real foco da série.

Então… O que esperar do seriado de Fallout?

Tendo em vista o enorme salto de vendas e jogadores que a franquia teve desde o lançamento do seriado, não acho que seja um exagero dizer que o seriado é perfeito em fazer o que um Fallout deve fazer.

O cuidado em manter a estética dos jogos, o comprometimento com efeitos práticos como forma de tradução de uma mídia para outra, e uma maestria no balanço de criar coisas novas para o show enquanto respeita o material original faz com que a série seja perfeita em criar o sentimento de “quero mais”.

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Não acho que o seriado substitua a experiência fenomenal que Fallout 1, 2 e New Vegas proporcionam. Quem gosta desses jogos pode até encontrar muito no seriado que seja desagradável. Mas o esforço para pelo menos tentar criar a mesma atmofera dos jogos está lá.

O seriado é a primeira vez que eu vi um videogame ser traduzido para a indústria cinematográfica e ser bem-sucedido. Mais do que uma festa de referências ou uma fanfic vestindo o nome de uma IP famosa, Fallout realmente faz jus ao nome, e ao sentimento passado pelos jogos.

Admito que talvez minha perspectiva sobre o show tenha sido influenciada pelo tratamento horrível que a Bethesda dá para a franquia. Afinal de contras – até mesmo levando em consideração as suas falhas – o Fallout da Amazon ainda é uma perceptível melhoria em cima do desastre que são os últimos jogos. Qualquer material que não esteja acorrentado a Creation Engine é bem-vindo.

E falando dos últimos jogos, a Bethesda aproveitou para lançar uma atualização de “nova geração” para Fallout 4… Uma atualização que quebrou o jogo ainda mais, destruiu projetos da comunidade, e nem mesmo “hotfixes” corrigiram problemas críticos. Afinal de contras…

Bethesda. Bethesda nunca muda.

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