Kunitsu-Gami: Path of the Goddess – Folclore interativo
Em uma era onde se tem a noção de que desenvolvedoras AAA estão forçadas a usar certas fórmulas para obter sucesso, Kunitsu-Gami: Path of the Goddess parece a Capcom dizendo “git gud” para todas as outras desenvolvedoras.
Mesmo não sendo o tipo de jogo que se classificaria como um sucesso blockbuster, sua originalidade é inegável. Algumas críticas até podem ser feitas a Kunitsu-Gami, mas não pode se dizer que não é um jogo com personalidade.
O que é Kunitsu-Gami?
O jogo foi revelado pela primeira vez faz um pouco mais de um ano atrás. Apesar de criar expectativas de ser uma ressurreição da renomada franquia Onimusha, o trailer deixa claro que se trata de uma nova IP.
Só que apesar de sua apresentação visual ser quase universalmente bem recebida, ele nunca foi bom em expressar que tipo de jogo ele realmente era. Oficialmente descrito como um “jogo de ação estratégica Kagura”, ele não está errado. Mas também não é exatamente claro.
Kunitsu-Gami é, para todos os efeitos, uma variação do gênero de tower-defense. Seu objetivo mescla a parte defensiva do gênero com a sua subversão estilo Anomaly. Durante o dia você gasta recursos para liberar o caminho para a sua sacedotisa purificar a vila. Durante a noite você tem que defendê-la de demônios enquanto ela fica estacionária.
A parte de “ação” é provavelmente a mais enganosa do jogo, porque apesar de controlarmos um espírito guardião que é perfeitamente capaz de derrotar hordas de demônios sozinho, seu combate é extremamente simples e pouco desafiador.
Não que isso seja um ponto negativo, Kunitsu-Gami faz essa fórmula funcionar através de uma perfeita mescla de mecânicas. O combate ser simplório serve para realçar a parte estratégica e dar mais liberdade para as animações cheias de floreio que contribuem para uma excelente direção artística.
Mesmo assim, é inegável que se tratando de ação, o jogo é claramente inferior a alternativas como Orcs Must Die ou Sanctum. Existem até mesmo fases onde o objetivo é estritamente defender a sacerdotisa apenas com unidades invocadas pelo jogador, enquanto a sua forma física é retirada.
Em outras palavras, para quem é da idéia de que parries estão muito prevalentes atualmente e gostaria de um combate um pouco mais descontraído, Kunitsu-Gami entrega exatamente isso. Ao mesmo tempo, é inegável que isso faz com que o combate seja o elo mais fraco do jogo. É apenas suficiente.
Estilo artístico e temática Kagura
O aspecto chave do jogo é ao se descrever como “kagura”. Para quem não acompanha cultura japonesa, o termo significa um ritual cerimonial da religião xintoísta, caracterizada por suas danças de purificação espiritual. A prática existe hoje em dia amplamente como uma expressão teatral, junto com os gêneros de Kabuki e Noh.
Em outras palavras, Kagura é parte do folclore japonês, contendo fortes temas religiosos e o conceito de purificação e reverência aos deuses através de danças cerimoniais. Essa é a premissa do jogo.
Os demônios são libertados através da ganância de um vilarejo que tratou com escárnio a benção da montanha. A sacerdotisa invoca um espírito protetor, e esse espírito é o personagem do jogador, Soh.
No que se trata de história não tem muito o que dizer. O jogo faz questão de nunca usar diálogo entre personagens, então todo o enredo é entregue por gesticulações ou por narração. Assim como as peças teatrais que o jogo se baseia, o foco não é a história, e sim a sua apresentação.
E nisso Kunitsu acerta em cheio. É um jogo que esbanja floreio artístico em tudo que faz. A RE Engine já é excelente em entregar gráficos bonitos, mas além do aspecto técnico, também foi dado um enorme cuidado na apresentação. E é claro, o jogo conta com um modo foto para quem gosta de engajar com esse aspecto também.
O design das máscaras, o design dos demônios, as animações de ataque dançantes, a purificação da corrupção, toda a interface com temática Kagura. Tudo é de se parar e admirar o trabalho feito.
E o design de áudio não fica atrás. Todos os efeitos sonoros fazem uso dos instrumentos geralmente usados em apresentações teatrais. E a trilha sonora também faz uso de instrumentos clássicos como o tambor taiko e suas músicas de guerra. Quem já ouviu e gosta da banda Kodo com certeza vai adorar a trilha sonora do jogo.
Para ir em detalhes existem várias coisas que poderiam ser elogiadas, mas basta dizer que, de uma forma geral, Kunitsu-Gami é um exemplo de direção artística em todo sentido da palavra. É sem sombras de dúvidas um dos melhores nesse quesito do ano.
Em gameplay
Por outro lado, em jogabilidade Kunitsu-Gami faz somente o necessário. Crédito onde merece, é bem executada e conta com alguns conceitos interessantes. Mas existem algumas falhas e deficiências que o fazem ser apenas mediano dentro do gênero.
Conforme dito anteriormente, a parte de ação é extremamente simples. Soh conta com um botão para ataque fraco, e um para ataque “dançante”. Usando um esquema de combos a lá Musou, são três ataques fracos e partindo de cada um deles tem uma funcionalidade diferente. O primeiro é um ataque anti-aéreo, o segundo é um ataque frontal, o terceiro é uma sequência de ataques de dano máximo.
Defensivamente, o jogador tem esquiva e defesa. A esquiva é auto-explicativa, a única coisa diferente dela é um ataque forte e um ataque fraco partindo dela. A defesa não conta com nenhuma mecânica de timing que nem parry ou parecido. Simplesmente segure o botão e negue todo o dano a custo de uma barra de stamina.
Após um tempo de jogo uma complexidade até é adicionada na forma de pontos de habilidade para Soh. Ganhamos ataques a distância com um arco, uma nova forma de ataque, algumas habilidades extras, e até mesmo é possível habilitar um perfect parry, mas nada disso muda fundamentalmente como o combate funciona.
A parte mais interessante da jogabilidade vem na forma de seu tower defense. O recurso primário do jogo são cristais. Cristais são usados para liberar o caminho para a sacerdotisa Yoshiro chegar no centro da corrupção da vila. Essa é a condição de vitória para telas normais.
Cristais também são usados para “comprar” unidades de defesa, então um balanço é necessário entre avançar a Yoshiro e conseguir montar as suas defesas. Dentro desse chassi simples, Kunitsu coloca uma surpreendente quantidade de sub-mecânicas para se manter interessante.
Por exemplo, cristais são obtidos quando Soh purifica partes da vila. Algumas purificações liberam aldeões que podem então ser transformados em unidades de defesa (arqueiros, lenhadores, lutadores de sumo, etc). Espalhados pela tela também tem vários outros recursos como:
- Plantas que dão mais cristais
- Animais corrompidos podem ser atacados para liberar a corrupção e eles dão um item de cura ao fazer isso
- Uma das unidades consegue desenterrar tesouros espalhados pelo mapa que podem dar itens de cura, cristais, ou pontos de habilidade
- Espalhados pela tela as vezes têm estruturas destruídas que liberam caminhos novos e necessitam de unidades atribuídas para consertá-las
- Após limpar todas as corrupções menores, um templo oferece um acessório novo
- Ordenar o carpinteiro a consertar barreiras ou pontos de vantagem
E ainda existem mecânicas específicas para telas, como uma escuridão que necessita lanternas acesas para liberar o mini-mapa e aumentar o alcance das suas unidades.
Terminando a luz do dia, começa a fase de batalha onde a Yoshiro permanece no lugar e o jogador tem que defendê-la. Inimigos também são outra fonte de cristais, e esse é o único recurso a ser coletado nessa fase. Ainda e possível reorganizar a formação das suas unidades ou trocá-las de funções, mas nada muito além disso.
Esse é o loop básico de combate. Fora das batalhas também existe bastante o que fazer. Após liberar as vilas, é necessário consertá-las. Os aldeões que foram libertados agora podem ser colocados em determinadas obras, e cada uma delas conta com uma recompensa diferente.
Outra coisa excelente é como nenhuma melhoria feita nas unidades ou no personagem principal é irreversível. O jogo conta com um sistema de respec extremamente leniente, que te incentiva a testar e trocar de estratégias. A progressão é um pouco lenta, mas as possibilidades de variação são enormes.
Kunitsu entrega uma vasta gama de atividades. É um pacote realmente completo além da excelente apresentação. A jogabilidade pode não ser o ponto alto do jogo, mas também nunca chega a ser ruim.
É claro, isso não significa que não tenha as suas falhas. A mais perceptível é, provavelmente, o próprio sistema de colocação de unidades, que começa a ficar extremamente caótico no momento que 8 ou mais unidades estão disponíveis.
A câmera e o mapa são mecânicas funcionais para as telas menores, mas são claramente insuficientes quando se chega nas telas mais avançadas. Para um jogo que se trata de posicionamento estratégico, é estranho que essa interface não seja mais funcional.
Kunitsu também depende muito de repetição para estender seu conteúdo. É um jogo divertido e a repetição não chega a ser sacal, mas – ao mesmo tempo – é um truque barato para aumentar o tempo de jogo e fácil de se ver pelo que é, especialmente tendo em vista que fases de batalha não podem ser aceleradas como pode ser feito durante o dia.
São pequenas falhas, mas algumas que começam a colocar em cheque o valor que ele pede.
No final de contas… Kunitsu-Gami vale a pena?
Para quem gosta de se deliciar com design artístico, seja visual, auditivo ou interativo, Kunitsu-Gami é facilmente uma das melhores alternativas para isso neste ano. Como um tower defense ele nunca faz mais do que o necessário, o que faz o seu elemento de jogabilidade ser mediano no melhor dos casos, apesar de ser divertido.
É um jogo que com certeza vale a pena o tempo investido, mas talvez tenha problemas em justificar um preço que chega quase a ser de um AAA. Por sorte, é um jogo que está incluso no gamepass para quem tem essa alternativa disponível. É uma recomendação fácil, se o preço for acessível.
PROS:
- Visualmente deslumbrante;
- Inabalável na sua temática;
- Excelente design de áudio;
- Uma masterclass em valor artístico;
- Simples e acessível.
CONS:
- Combate excessivamente simples;
- As vezes um pouco devagar na sua progressão;
- Problemas na câmera e gerenciamento de unidades.
PLATAFORMAS:
- PC – MS Store (Gamepass), Steam (Plataforma analisada, chave gentilmente cedida por Capcom);
- Nintendo Switch;
- PlayStation 4/5;
- Xbox One /Series.
NOTAS:
Jogabilidade: | Qualidade dos controles | 9 |
Design (Dificuldade, Level, Criatividade) | 9 | |
História: | Enredo | 5 |
Narrativa | 9 | |
Arte: | Gráficos | 9 |
Direção artística | 10 | |
Audio: | Efeitos Sonoros | 10 |
Trilha Sonora | 10 | |
Port | Estabilidade | 10 |
Otimização | 10 | |
NOTA FINAL: | 9.1 |
É raríssimo ver um jogo tão estranho quanto Kunitsu-Gami vindo de uma grande produtora. Crédito onde merece, ele é um jogo extremamente original e seria considerado uma idéia muito arriscada para uma Activision ou Ubisoft. E ele me fez desejar que tower defenses fossem mais popular. Sinto falta de jogos como Defense Grid, Sanctum, OMD e Dungeon Defenders. Imagina o que poderia ser feito numa escala AAA?