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Tunic e o dilema da nostalgia

“Se você pudesse esquecer tudo de um jogo e jogar de novo, qual seria?”

Com certeza já esbarrou com essa pergunta se você participa de qualquer comunidade de jogos com o mínimo de freqüência. A idéia por trás dela é basicamente saber qual jogo foi o que teve o maior impacto ao se jogar pela primeira vez, mas o jeito que a pergunta é formulada sempre me soou meio errado.

Pensa assim, você realmente ganharia algo apagando uma experiência da sua memória e revivendo ela? Uma das minhas memórias mais fortes de jogos é explorar o castelo de Symphony of the Night. Cada segredo descoberto era uma emoção indescritível. Uma parede que podia ser quebrada, um item que tinha um uso inesperado, um novo bioma que eu não tinha visto antes… Tudo era simplesmente mágico.

Quem nunca perdeu tempo na capela tentando entender o que tinha escondido ali?

E mesmo sabendo cada milímetro de seu mapa e todo e qualquer segredo, glitch e easter eggs, eu ainda não acho que gostaria de esquecê-lo e jogar completamente do zero. Aliás, eu ainda jogo SotN hoje independente de quão “manjado” ele seja. É graças ao ele que eu sou meticuloso em todo metroidvania que jogo desde então. Toda parede é suspeita. Toda descrição de item é lida. Toda combinação de armas é testada. Tudo é virado e revirado.

Em outras palavras, essa é a definição de uma experiência que muda a forma que você pensa. Desde alguma nova filosofia de vida até algo simples como mudar a forma de se jogar um certo gênero, o X da questão é justamente o conceito de “digerir” uma obra. É a diferença entre algo “legalzinho” e outra tão marcante que seu processo de descoberta é único.

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Então de novo, esquecer algo e jogar de novo realmente é algo que vale a pena? Porque para mim parece um retrocesso. Revisitar uma obra com a perspectiva que se tem hoje até é compreensível, mas desejar que tudo seja exatamente como era antes me soa como uma nostalgia destrutiva.

Essa é tanto a premissa de Tunic, como a sua subversão. Tunic se vendeu como um clone de Zelda. Seu criador, Andrew Shouldice, simplesmente descreve o jogo como a “história de uma pequena raposa em um mundo grande” e isso é uma descaracterização tão grosseira do que o jogo realmente é que chega a ser impressionante.

Tunic - Marketing
Esse artigo mostra alguns desafios no marketing do jogo.

Não estou insinuando que o criador não sabe do que o jogo se trata ou nem que ele seja ruim em marketing, mas explicar o que Tunic é já é um spoiler por si só. E para Shouldice, a prioridade era preservar essa experiência ao máximo. Uma ótima decisão que provavelmente é o que fez o jogo ser tão marcante do jeito que é.

A nostalgia de Tunic

Tunic teve o seu marketing representando o jogo como um clone de Zelda. O seu gameplay é isométrico, então é como se fosse um dos Zeldas 2D tipo A Link to the Past ou Link’s Awakening, só que com uma estética 3D.

Ele também está longe de ser o primeiro com uma idéia do tipo. Anodyne usa até a mesma estética dos Zeldas de SNES, só tem mais elementos de terror. Titan’s Souls usa um combate único e é mais sobre ser um boss rush do que sobre exploração. Evoland usa quase exatamente o mesmo gameplay para criar uma história sobre a evolução das tecnologias em games.

Na primeira impressão, Tunic não faz nada disso. Ele realmente não oferece nada além de uma experiência baseada em nostalgia. A história de “uma raposinha pequena em uma aventura enorme”. De certo ponto, sim, Tunic é sobre nostalgia. Mas não é a mesma nostalgia invocada pelos outros títulos como Anodyne, Titan’s Souls ou Evoland.

Aliás, a nostalgia que Tunic oferece não pode ser replicada nem por voltar e jogar esses Zeldas clássicos mais uma vez, e com certeza funciona até quem nunca jogou esses Zeldas, contanto que tenha jogado qualquer coisa nos anos 90 no Brasil.

OK, deixo aqui o segundo aviso de spoilers. Se você tem o mínimo interesse em jogar Tunic, eu altamente recomendo fazer isso primeiro. A experiência que ele providencia é sem igual, e nada vai superar senti-la em primeira mão.

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Apesar de simples, sua própria tela de entrada já exala um certo mistério.

Logo depois de clicar em “New Game”, Tunic simplesmente te joga no começo da ilha sem nenhuma explicação. Nem sequer mostra na tela os botões para andar ou fazer qualquer ação. Não existe guias. Não tem um mapa. Não tem nenhum diálogo.

É claro, muito provavelmente todo mundo vai conseguir deduzir que se usa o analógico para andar e que um dos botões serve de esquiva. Alguns até vão achar um botão que parece ser de lock-on e outro que abre o menu. Nada disso importa nesse começo sem nada.

Tunic - Intro 1

A gente continua pelo único caminho disponível, e encontramos um elemento que claramente salta comparado ao resto. Uma caixa de cartas estilo americano em um mundo fantasioso desses. Obviamente somos instigados a investigá-lo, e quando fazemos isso…

Tunic - intro 2

…ok?? Simplesmente o jogo fazendo graça. Entramos nessa caverna, encontramos um baú, e novamente somos afrontados com o que parece ser o jogo tirando sarro da nossa cara.

Tunic - Intro 3

Isso é o diferencial de Tunic. E enquanto isso parece só uma zoeira sem importância, logo mais isso começa a ser elaborado quando encontramos páginas do “manual de jogo”. Todas também com esses símbolos estranhos.

Tunic - Manual 1

A melhor parte disso tudo? O jogo é traduzido para 26 línguas diferentes, português brasileiro sendo uma delas.

Tunic - Manual 2

Quando a ficha cai, é simplesmente brilhante. A nostalgia que Tunic invoca não é simplesmente com coisas que fazemos dentro do jogo, mas sim de toda a experiência de jogar ele quando criança. Hoje em dia vários jogos têm tradução para o português, alguns até mesmo com dublagem e tudo! Mas lá pela quarta e quinta geração de videogames, tínhamos sorte se espanhol fosse uma opção para que mais ou menos pudéssemos entender o que estava acontecendo. A maior parte era apenas em inglês, isso quando não era japonês!

Tunic - Manual de outros jogos 1

E é claro, muito das explicações tanto de jogo quanto da história eram relegados aos manuais. Não existiam tutoriais do jeito que se vê hoje. Era uma indústria nascente e todo mundo, jogadores e desenvolvedores, estavam tentando descobrir o que fazer por tentativa e erro.

Tunic - Manual de outros jogos 2
Kojima sempre tentou surpreender seus jogadores de formas incomuns.

O jogo chega até a ser bem claro sobre essa intenção quando se vai no manual de instruções e apertamos alguns botões para mexê-lo de lado. O jogo descaradamente quebra a quarta parede e vemos o jogo pausado de fundo em monitor CRT antigo. Com gráficos piores e tudo o mais, talvez justamente pra emular como nós lembramos de jogos muito mais vividamente do que eles realmente eram.

Tunic - Manual 3

Só isso já teria solidificado o jogo como uma das melhores experiências que eu já tive pela genialidade, mas não contente com apenas esse gimmick, Shouldice fez de tudo para provar que a sua descrição do jogo estava corretíssima.

O mundo de Tunic não é tão grande assim. Especialmente em uma realidade onde jogos usam “uau 50+ horas de jogo e um mapa de 1512839 KM²” de marketing.

Tunic - Mapa do mundo
“Jogo de Mundo Aberto 2 – Agora com 65% mais mapa, por mapa!”

De fato, se pegasse todas as áreas de jogo de Tunic é provável que ele seria marginalmente maior que os Zeldas antigos. Mas seu tamanho não é de forma bruta. Não é um tamanho gerado proceduralmente e cujos detalhes não importam. É você – o jogador – que tem as suas fronteiras constantemente ampliadas. A cada nova página de manual que se encontra, você descobre que aquele segredo que você viu lá atrás e achava que precisava de alguma chave ou upgrade podia ter sido pego a qualquer momento.

Algo simples como descobrir que a raposa tem um comando para entrar em pose de reverência é um dos momentos mais “não fode” que eu tive num jogo em tempos recentes. E logo depois disso o jogo te dá um outro sentimento desses ainda maior.

Tunic - Aquela porta...
Imponente, mas ao mesmo tempo te desafiando a abri-la.

E depois que você descobre tudo que o jogo escondeu de você esse tempo todo, e volta para uma porta imponente que encontrou depois de um caminho estranho… Que você finalmente tem aquela euforia de ter descoberto algo que não era para ser desvendado.

Você não sabia o que aqueles símbolos significavam, você não teve nenhum tutorial ou explicação, simplesmente com dedução, exploração e perseverança você consegue algo que precisava de instruções claras.

POV: Você finalmente chegou “naquela” parte de Tunic

Essa é a nostalgia de Tunic. Algo que nunca vi replicado em um jogo antes. Ao invés de tentar emular os jogos antigos em estética, aparência ou gameplay, ele faz você sentir a mesma coisa que sentiu ao jogar eles. A mesma euforia de descobrir que SotN tem um segundo castelo. Que aquelas caixas de Nitro em Crash 2 que não pulam são uma escada que levam para um nível secreto. Que Valkyrie Profile tem um final completamente diferente se você deliberadamente ignorar as ordens que te são dadas…

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Eram essas coisas que davam chance para mitos como “salvar a Aerith em FF7” ou “desbloquear Sheng Long em SF2”. Você nunca sabia se tinha descoberto tudo que um jogo tinha para oferecer. Os mundos deles eram infinitos pelas possibilidades que imaginávamos.

O verdadeiro valor da nostalgia

                É muito fácil cair no espiral de que as coisas estão piores ou que certos aspectos jamais vão voltar a serem comuns. Apesar de pessoalmente ter uma grande preferência pelo design de jogos clássicos e uma certa resistência a jogos de cinemáticos e scriptados, eu não sou do tipo que acha que tudo quanto é coisa moderna é ruim.

Vamos fingir que a dificuldade dos antigos era puramente por design e não para maximizar lucro com aluguéis de cartucho OK?

Em outras palavras, por mais que eu gostaria de ter o sentimento de nostalgia que os jogos clássicos ofecerecem, eu não sei se apagar da memória e refazer exatamente a mesma coisa é uma resposta satisfatória para esse desejo.

A nostalgia que Tunic ofereceu foi única. Ao mesmo tempo que seu atrativo seja para pessoas que tenham aquela experiência de jogar coisas antigas em línguas desconhecidas, ele ainda oferece o mesmo sentimento de um mundo expandindo sob os seus olhos independente desse pano de fundo.

Lendo detonados pra descobrir como que salva a Aerith.

Acima de tudo, é uma prova clara de que não é necessário esquecer nada para evocar um velho sentimento. Rejogar Majora’s Mask não me daria a mesma euforia que foi jogar Tunic. Porque apesar dos dois jogos serem parecidos em filosofia e design, Shouldice resolver elaborar em cima de um sentimento clássico ao invés de destruí-lo só para refazer do zero.

Tunic é um excelente exemplo de reverência ao passado com os pés no presente. A prova de que nostalgia pode ser mais do que simplesmente ser um velho reclamando que as coisas não são mais como antigamente, e que também pode produzir algo inédito e atrativo para uma nova audiência. É como se nostalgia fosse um tempero, e Tunic fez o melhor uso dela para criar um gosto único sem ser enjoativo. De longe a melhor experiência que 2022 ofereceu para mim.

A mimir depois de fazer o GotY de 2022